As Escolas do Meu Coração- O Cerco do Porto

 Depois de, com o meu último post, receber já tantas e tão carinhosas mensagens daqueles que fizeram caminho comigo naquela que também é escola do meu coração, o Cerco, dei comigo a somar recordações em catadupa. Começando pelo início, mentiria se dissesse que não tive receio. Ou que foi muito fácil e tranquilo. Estava num TEIP que por algum motivo o era. Entrar com 11 turmas foi logo um desafio. Só não tinha duas turmas de 9º, todo o 3º ciclo estava comigo. Vantagens: adquiri um vasto conhecimento dos alunos, e pude conhecer a escola antes do choque com os Cursos de Educação e Formação- que não eram desafio menor. Isso e começar a desejar um bom fim-de-semana às 10 horas de segunda-feira (ter as turmas uma vez por semana tem destas coisas). No ano seguinte, quando comecei a trabalhar também com CEFs, parte dos alunos já me conheciam de outro contexto, o que facilitou bastante. Houve turmas muito complicadas, houve momentos em que me pareceu viver numa realidade paralela. Mas aprendi a perceber que há padrões e valores diversos, e que o que para alguns é um drama, para outros é a vida que sempre conheceram e com a qual vivem tranquilamente. Uma vez, perguntei a um Colega por que motivo permanecia numa escola como aquela. Respondeu-me que sentia que ali fazia a diferença. E tinha razão. O Cerco apareceu-me no rescaldo do primeiro impacto da MLR, entre as aulas de substituição e a cisão entre titulares e os outros. E no Cerco, sentia-se uma união grande entre os professores. Partilhava-se o que acontecia, por vezes, na sala de aula, e os mais experientes davam conselhos, sem recriminações nem sobrancerias. Cheguei a dizer que naquela escola, um bom professor não era o que não tinha problemas, mas o que os conseguia resolver. E esse processo de resolver problemas implicou, no meu caso, perder o medo de arriscar, de experimentar, de andar no fio da navalha, sabendo que tudo podia correr muito bem, mas também podia correr muito mal. Isto obrigou-me a avaliar constantemente, a aceitar o erro como parte do processo mas também a aprender depressa para o corrigir. Muitas vezes (com o célebre 7º H) pensei: não podes endireitar a sombra de uma vara torta. E era isso que eu sentia que estava a tentar fazer. Mas éramos muitos a tentar o mesmo. E a verdade é que o acreditar (e o levar a que outros acreditem) faz milagres. Alguns alunos dessa turma são hoje, o exemplo disso.

Foi aqui que pela primeira vez acompanhei alunos desde o 7º ao 12º, e que trabalhei regularmente no secundário. Os alunos mais crescidos foram cúmplices nos mais variados desafios que me eram lançados. Um dos que mais me marcou foi a Provedoria do Aluno. Chegar à sala, dizer: fizeram-me esta proposta, quem alinha? E ter do outro lado um pronto “conte connosco” era fabuloso. Desde o apoio entre pares (hoje seria denominado tutorias, mas já as tínhamos implementado antes delas existirem), às receções aos alunos de 5º ano pelos alunos mais velhos, às vezes com os testemunhos de ex-alunos que já tinham terminado o 12º, e aquelas que foram as “meninas dos meus olhos”: as assembleias de delegados. Dar voz aos alunos, pondo-os em contacto direto com o Diretor do Agrupamento que, apesar da agenda apertada, encontrava sempre uma tarde para reunir, e os ouvia, explicando por que motivo algumas das suas solicitações não eram exequíveis mas também ajudando na concretização das que o eram. Criar atividades dos alunos para os alunos, com os alunos. E ver surgirem, por parte do Ministério da Educação, propostas que, para nós, eram já práticas recorrentes e consolidadas, fez-nos perceber que fôramos precursores. E o plural não é majestático. Com variações derivadas da distribuição de serviço, com ou sem horas no nosso horário, primeiro a duas e depois a três, fiz parte de uma equipa de sonho. Na Provedoria e fora dela. Há pessoas que nos farão sempre falta. E tenho a certeza de que nada teria sido como foi se tal não tivesse acontecido.
Creio que há duas palavras essenciais para que haja desejo de aprender: a curiosidade e o encanto. E foi muito bom sentir, como professora, essa curiosidade e esse encanto, quando me deixava surpreender pelos alunos, que muitas vezes tomavam conta das aulas para apresentarem os seus trabalhos, ou escreviam a história apropriando-se dela, falando na primeira pessoa daquilo que nunca tendo vivido, conheciam como se tal tivesse acontecido. Ver transformações diante dos nossos olhos: alunos tímidos, que subitamente se transformavam em comunicadores natos, e fascinantes.. E sim, também houve muitas aulas tradicionais, muita folha escrita, muito resumo, muita preparação para o exame. Mas com uma certeza que crescia dentro de mim: a de que mais importante do que ensinar conteúdos, seria formar Pessoas. Porque o que não falta na história do passado e do presente são génios desprovidos de humanidade.
Há precisamente 10 anos, Valter Hugo Mãe escrevia, num post de Facebook, “claro que a comunidade recatada vai adorar ter as fontainhas muito arranjadinhas, como um jardinzinho para as fotografias. e não vão pensar mais no que acontece às pessoas que estão a ser despejadas no cerco.do aleixo para o cerco, das fontainhas para o cerco. como se o cerco fosse uma cidade de enjeitados."
Partilhei no meu mural, nesse mesmo dia. E a propósito, escrevi: “Como se o cerco fosse uma cidade de enjeitados". Felizmente que o cerco também é a cidade dos que contrariam estigmas, ultrapassam previsões e superam expectativas. O cerco é a cidade dos que não desistem. Por causa do cerco, perdi a paciência para niquices e queixinhas de quem acha que a culpa é sempre dos outros. Costumava dizer que se viesse por aí uma bomba atómica sobreviveriam as baratas... E o cerco. O cerco bairro e solidário, que pode dizer mal do vizinho mas também põe mais um prato na mesa para que este não fique sem sopa. O cerco assim batizado porque resistente. Até hoje.
Nunca concorri para sair do Cerco, mas sim para me aproximar de casa. Não chegava a meia dúzia de escolas. Poucas probabilidades, portanto. Há dois anos, no concurso de professores, surgiu uma vaga para o Levante da Maia. A partir daí, comecei a dizer que ia para o Levante. Semanas depois, a saída das colocações mostrou-me que estava certa. Na despedida (uma despedida sem despedidas, que não gosto muito delas) senti que a minha missão no Cerco estava cumprida. Tenho a certeza de que neste momento já nenhum aluno se lembra de mim, na escola. Somos peças de uma máquina. Quando saímos, não falta quem nos substitua. E ainda bem que assim é. E contudo, o carinho que ainda hoje recebo daqueles com quem partilhei o tempo e o espaço no Cerco, e as memórias que todos guardamos, é a maior evidência de que tudo valeu a pena.
Releio o texto. Há tanto por dizer... Dos Colegas, e foram tantos, com quem partilhei sonhos, desabafos, abraços e também desilusões. Das Assistentes Operacionais, atenciosas, simpáticas e tantas vezes cúmplices no desafio que é ajudar os mais jovens a crescer. Dos meus (sim, desculpem lá, mas continuarão sempre a ser os meus) Alun@s. Não será ainda o tempo nem o local para o fazer.

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