Das guerras que ficaram quando a guerra acabou

A Guerra no ultramar, uma página de um manual de nono ano. País multirracial e pluricontinental, movimentos de independência das colónias, para Angola e com força, estatística dos mortos, feridos e gastos de guerra. Independência das colónias, um parágrafo para o regresso dos retornados e siga. Está feito.
Nas aulas partilhamos relatos (cada vez menos, que quem passou pela guerra foi morrendo ou esquecendo, e também há vergonhas que se escondem, e silêncios eternos, que a guerra é como Las Vegas mas em mau- o que lá aconteceu, fica lá). Ainda há os álbuns de fotografias, com as fotos tradicionais com as “namoradas de lá”, dos soldados de braço dado, os aerogramas, as histórias de caça, que parecem limpar o outro lado da guerra. Volta e meia relatos diferentes. Aqueles que levantam a família a meio da noite porque “eles vêm aí”, o familiar que se escondia debaixo da mesa quando o frigorífico fazia um ruído estranho, os estremecimentos quando ouviam helicópteros. Lembro-me agora do homem quer se sentou ao meu lado no autocarro e começou, do nada, a falar (eu nem gosto nada de falar da guerra, menina) e a páginas tantas, estava a contar-me do horror de apanhar corpos desmembrados, e a meter bocados nos sacos pretos- sem saber se aquele braço ou aquela perna eram do mesmo corpo. Que importava isso, era preciso era recolher tudo...
Foram lutar pela pátria porque os mandaram, voltaram outros, sem que ninguém se preocupasse com isso- havia problemas maiores a resolver, laços a estabelecer com as ex-colónias agora livres, uma integração europeia a concretizar, o problema dos que retornavam para resolver, a democratização que se queria fazer. Os soldados eram só isso. Soldados. Danos colaterais de uma guerra que outros começaram e acabaram. Carne para canhão. E esqueceram-se daqueles que continuaram a viver (e a fazer viver os seus) em guerra e na guerra o resto da sua vida. Os tratados de paz só acabam com as guerras no papel. Para alguns, a guerra acabou mesmo com o seu regresso a casa. Mas em muitas casas continuaram a existir as catanas, o cheiro a pólvora e a sangue e o ódio aos pretos. Assim. Às vezes saem do buraco e aparecem. Assassinos, sim. Sem desculpa, sem perdão. Mas nasceram assassinos ou foi a nação valente e imortal que os fez assassinos e depois os deixou por aí, à solta?

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